O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Dia-a-dia #116

Estava na biblioteca bem concentrada nas leituras quando me senti observada: reparei então que na mesa em frente, um peculiar rapaz me estava a desenhar. Já o tinha visto por ali, também no Chiado, deve andar nas Belas. Surpreendeu-me, não o censurei e deixei-me estar, encarando como sendo algo natural. Ele percebeu e continuou o desenho. A sensação foi estranha porque aquele olhar sabia perfeitamente o que estava a captar, os gestos eram precisos e sem indecisões. A estranheza derivou da troca de papéis, sei que por vezes faço isso com conhecimento técnico, com as mãos em acção no papel. Agora sou eu: tratava-se dum jovem apolínio, bastante andrógeno, que dá gosto olhar, mas não dá vontade nenhuma de mexer; tinha uma figura fora do vulgar, alto, robusto, elegante e vestia de negro; o rosto era demasiado desenhado e equilibrado, daí o apelidar de apolíneo; a andrógenia derivava do longo cabelo louro cendrê; também tinha umas patilhas horriveis, com um ar experimental próprio da idade; as mãos eram sensuais, os dedos compridos estavam sujos de grafite, mãos de trabalho que não devem parar quietas; as mãos seguiam o seu olhar verde-água, rasgado, de lince selvagem que me dissecou sem piedade. Por fim, levantou-se para ir buscar os livros, deixou o bloco de apontamentos na mesa aberto com o desenho terminado. Não consegui observar bem o desenho porque estava longe, mas deu para ver que registou o meu decote com prazer.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Amália Rodrigues - Fado Malhoa



A secretaria de Estado da Cultura anunciou hoje que a artista plástica Joana Vasconcelos vai representar Portugal na próxima Bienal de Veneza, em 2013.

Em comunicado, o secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, afirmou que Joana Vasconcelos nunca foi a artista convidada do pavilhão português no certame, mas que “está na altura de corrigir essa falha”. “Tem colocado o nome de Portugal ao mais alto nível no mercado mundial da arte”, justificou, acrescentando que as obras da artista, conhecida pelo seu trabalho de escultura, “levam ao exterior a marca identitária e tradicional de Portugal ao mesmo tempo que expressam uma modernidade assombrosa”.

Paulo Portas elogia Joana Vasconcelos

 


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Poema # 82

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Dia-a-dia #115

Fui marcar uma colonoscopia que estou para fazer quase há um ano. Depois de renovar a credencial,que já estava caducada, lá descobri uma clínica que tem parceria com a ARS. Na clínica deparei-me com uma enorme fila no balcão de atendimentos. Olhei para a televisão e lá estava uma daquelas coisas que se passam à tarde, um velhote cantava um fadinho deprimente e como estava bem disposta comecei a imitá-lo baixinho. Ao meu lado começou-se a rir uma caboverdiana de idade indefinida, tanto podia ter 50  como 70 anos, com umas bochechas amorosas. Comentou logo que o homem da TV cantava muito mal, e continuou a rir-se com ar de miúda traquina. Atrás dela estava o marido que era alto, magro e com um bigodinho muito composto. À minha frente estava uma senhora a levantar o exame do filho, e pediram-lhe para pagar mais 100 euros por causa de terem retirado um polípulo. A caboverdiana olhou para mim preocupada, dizendo que a senhora se calhar não tinha dinheiro, mas afinal, um homem que estava ali perto sentado - talvez o marido -  sacou das notas e pagou. Chegou a minha vez e fiquei a saber que tinha de deixar um sinal, apesar de só ir fazer o exame em Julho - para além da taxa moderadora, vou ter de pagar 150 euros pela anestesia, uma roubalheira, porque apenas me colocam a dormir, provavelmente  com um Valium e mais umas gotinhas de Tramal. E como não havia multibanco, fui levantar dinheiro lá fora. Já no multibanco, deparo-me com uma moeda de um cêntimo no meio do chão, apanhei-a porque achei que me ia dar sorte. De volta à clínica, encontro o casal caboverdiano à porta, ela não estava com boa cara. Mostrei-lhe a moeda de um cêntimo e contei-lhe que a tinha encontrado no chão. Ela queixou-se que o marido estava desempregado, mas tinha pago taxa moderadora, porque faltava documento. Coloquei-lhe então a moeda que encontrei na mão dela, segurei-lhe a mão e disse-lhe para  não se preocupar, que a moeda lhe traria boa sorte. Ela agradeceu e voltou a sorrir com ar de miúda traquina.

Ilustração #34

 


 


Ésquilo - "Agamémnon". Lisboa: Edições Artefacto, 2012
Imagens da capa e contra-capa da minha autoria.

sábado, 2 de junho de 2012

Dia-a-dia #114


O gato Sol teve hoje uma experiência nova: estive toda a manhã a pintar e a ouvir a Antena 2. Ele aparentemente reagiu bem, dormiu no sofá ao pé de mim, até que reparei que acordou assustado: na rádio Puccini e as pinturas estavam no chão a secar. Ele saltou e foi cheirá-las desconfiado. Depois olhou para mim e dirigiu-se para a porta do quintal, que abri para o deixar ir à sua vida. Deduzo que não gostou nem de Puccini, nem das minhas pinturas.

Ilustração #33







Pedro Tiago - "O comportamento das paisagens". Lisboa:  Artefacto Edições, 2011.

Imagens da capa e contra capa da minha autoria.
Mais ilustrações aqui e aqui.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Ilustração #32







2.
Creio ter aqui chegado por um certo engano,
e por isso o meu nascimento foi uma avareza de rosas,
e os cães rosnaram no extremo da charneca, e um uivo
inquietou a solidão doirada da planície para que algo
me dissesse como estou aqui, como cheguei aqui,
como o meu leite é negro sob a tempestade dos homens
e os elementos não sabem como interromper a ameaça.


Onde anda meu pai a esta hora infinita, não sei.
De todos os lugares chegam vozes impossíveis,
e o meu berço azul brilha no centro da terra, nesta casa
de cal, nesta branca tirania da suavidade, que Eliat ignora
e só um mar vermelho poderia aquietar.


Venho à vida, e venho a um lugar estranho onde as vozes
se levantam para murmurar, e por murmurações
entendo a condenação à fogueira, e a chuva de larvas
nos campos em volta, e os cavalos desenfreados
que vão de igreja em igreja procurar a redenção,
e os homens que, nas tendas, preparam as facas.


Aqui nasci, e não tenho onde repousar a cabeça, e nada
vem transformar a água em vinho, e a minha língua arde
pela impossibilidade de escolha das primícias, sendo que quero
uvas, maçãs, um pêssego absoluto, e toda a paz da planura,
toda a paz da humildade, enquanto os meus mortos revogam
os meus cânticos, e eu canto como cantam as raparigas de Jerusalém.

 Amadeu Baptista in "Outros Domínios Clamor Por Flobela Espanca", Coimbra, Temas Originais, 2011.